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GRINDR, SOLIDÃO E UMA EPIDEMIA SILENCIOSA

De antemão, não estou aqui para criar nenhum juízo de valor, indicar ou induzir o que é certo ou errado; não acredito em certo e errado, e muito menos como se o “certo ou errado” fosse um lado a se escolher. O interesse é apenas em debater e dar luz a situações que me cercam.

Como homem gay, de uma família nada estruturada; tendo vivenciado o abandono e vários outros aspectos do desamor na minha formação, foi preciso construir minha autoestima do zero. Ela não me foi dada. Muito pelo contrário, falando de racialidade, ela foi categoricamente retirada de mim. Amadurecendo, decidi construí-la em bases sólidas, o que levou tempo e teve muitos altos e baixos (e ainda não acho que esteja construída por completo).

Por experiência própria, o abandono cria uma vontade de se provar: ser inteligente, bonito, interessante, desejável e, principalmente, pertencente. E essa vontade crônica de pertencimento nos leva a fazer qualquer negócio para ser amado. Acredito fielmente que esse seja o cerne da situação: todos querem amar e ser amados. Quem diz que não, é hipócrita ou está mentindo para si mesmo.

Essa angústia por pertencer, atrelada à baixa autoestima, nos faz correr direto para a validação externa, no meu caso, para compensar. Será que estou mesmo interessado ou o fato de ele ser bonito e interessante faz de mim bonito e interessante?

O Grindr foi um dos primeiros aplicativos geossociais para homens gays, lançado em março de 2009 para iOS. Rapidamente se tornou muito popular: basicamente permite que as pessoas criem perfis em uma grade para que os usuários se localizem, facilitando a comunicação e, claro, tornando o encontro muito mais rápido. O que, no começo, era o que a comunidade realmente precisava. Muitos gays que viviam em cidades pequenas conseguiam se encontrar, o que fortaleceu o senso de pertencimento. Outro fator é que, naquela época, boa parte ainda vivia na clandestinidade; o estigma ainda era um peso que muitos não queriam carregar. O anonimato que o Grindr proporciona parecia ser a solução de todos os problemas.

Mas o que parecia libertador, com o tempo mostrou também seus efeitos colaterais. Pesquisas apontam que o uso frequente de aplicativos como o Grindr está associado a maiores índices de ansiedade, depressão e solidão. Um estudo publicado no Journal of Adolescent Health (2018) mostrou que homens gays e bissexuais que usam aplicativos de encontro reportam níveis significativamente mais altos de insatisfação corporal e dependência de validação externa. Outro levantamento, feito pela Universidade de Michigan (2017), indicou que usuários de apps de encontros geossociais relatam quase o dobro de sintomas depressivos em comparação a quem não utiliza essas plataformas.

Isso se conecta a um mecanismo psicológico que o próprio app, intencionalmente ou não, explora: o chamado “reforço de razão variável”. O reforço de razão variável é tão forte porque age direto no nosso sistema de recompensa cerebral. Diferente de uma recompensa previsível, como receber um salário no fim do mês ou uma nota depois da prova, ele se baseia na imprevisibilidade: nunca sabemos quando a recompensa vai aparecer. É o mesmo princípio que mantém as pessoas jogando em máquinas caça-níqueis, já que a próxima rodada pode ser a premiada. Nos aplicativos de pegação, funciona da mesma forma: pode ser que o próximo perfil seja mais bonito, mais interessante, mais desejável; pode ser que a próxima notificação traga atenção, sexo bom ou até uma promessa de afeto. Essa incerteza gera uma descarga de dopamina constante, criando um ciclo viciante em que permanecemos conectados por horas, mesmo quando não há nada de concreto acontecendo. Por que então fechar o aplicativo?

O que me leva a dizer que, em relação ao indivíduo, cada um sabe de si e, sim, o aplicativo de fato é “apenas” uma ferramenta. As pessoas usam da forma que bem entenderem e os prejuízos são particulares de cada um. Ok. Em contrapartida, uma plataforma que diariamente possui 3 milhões de usuários conectados ao redor do mundo, que se tornou um ”dress code” do gay dos anos 2020’s, que em menos de 20 anos mudou e (continua mudando para um lugar que ainda não sabemos) o comportamento e a forma de se relacionar de uma comunidade, então eu acredito, sim, que o aplicativo deva se responsabilizar em nível de saúde pública. Vejo o mesmo tipo de relacionamento entre meus amigos: a hipersexualização de corpos pretos; o isolamento social; a exclusão de corpos fora do padrão. Além do anonimato fornecido pela plataforma, que dificulta a resolução de crimes ocorridos dentro do app; e, por último – e talvez o mais importante – o uso abusivo e o tráfico de drogas que ocorre dentro da plataforma. Falando rapidamente sobre o uso de drogas – pois esse é um tema tão complexo que precisaria de um texto apenas dele -.

O chemsex, ou sexo químico, encontrou terreno fértil nos aplicativos de relacionamento. Em poucos cliques, o usuário marca encontros, compra ou vende drogas. Enquanto isso, o governo mantém o foco quase exclusivo nos índices de HIV e outras ISTs, o que torna ainda mais difícil mapear casos e produzir números consistentes sobre o consumo de metanfetamina – a substância que está no topo do consumo nesse contexto. E, fazendo um paralelo ao começo do texto sobre as inúmeras violências e aos episódios de abandono, isolamento e baixa autoestima, a comunidade fica altamente propícia a se vincular a esse tipo de prática. Somado ao aspecto fortemente viciante do app já mencionado, cria-se um combo perfeito, misturando a dependência psicológica com a química.

Observo conhecidos que hoje frequentam o narcóticos anônimos, outros internados em clínicas de reabilitação. A dependência psicológica é tão forte que atividades básicas como trabalhar, estudar ou até se alimentar deixam de ser prioridade. Mas há uma diferença brutal: enquanto pessoas brancas muitas vezes conseguem se internar e retomar a vida, nós, pretos, não temos tempo nem dinheiro para esse luxo. Nossa atenção precisa ser redobrada. E como comportamento, se torna mais do que um problema individual, o avanço do chemsex é um desafio de saúde pública. Exige políticas específicas de prevenção, redução de danos e acolhimento, para além do simples combate policial ao tráfico. Talvez, se houvesse mais interesse e responsabilidade em relação aos usuários, muitos desses fatores poderiam ser minimizados.

No meu entorno, tenho forçado a abertura desse tipo de diálogo. Endosso que o app tem mudado o comportamento humano, sobre como, sem perceber, acabamos nos colocando em inúmeras situações de risco e em como o vício ao Grindr sabota as relações afetivas que tentamos nutrir. Bato muito nessa tecla. A forma como nos condicionamos a um determinado tipo de afeto, ou à falta dele. Ou, ainda, como fazemos o processo inverso: encaramos o sexo como ponto de partida e não como linha de chegada.

E é importante dizer mais uma vez: não escrevo tudo isso para julgar quem usa ou deixar parecer que estou acima dessas dinâmicas. Eu também sou exposto, atravessado por esse mesmo contexto e por essas mesmas armadilhas. Me observo, porém muitas vezes falho miseravelmente. Penso nesse debate como um fator urgente que atravessa saúde pública, raça, corpo, afeto e pertencimento. Talvez, se conseguirmos falar mais sobre o tema abertamente, possamos começar a criar caminhos para ajuda mútua, escuta e maneiras de diminuir a solidão.

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